domingo, 10 de maio de 2009

Extra: Tico Tico no jornal Hoje em Dia


Para quem não comprar o jornal, segue aí o texto que saiu hoje.

Cidade Inutensílio
Roberto Andrés

Em artigo anterior lembrei o papel das ruas como espaços enriquecedores da experiência humana pela articulação pública com os outros, e apontei a pobreza urbana gerada pela transformação das nossas ruas em quase somente vias para circulação de veículos. A ausência de políticas públicas para qualificação urbana no Brasil faz com que tenhamos cada vez menos espaços para a troca (de informações, experiências, produtos) com os outros e com o ambiente. Esta é uma questão política, que deveria ser tratada com seriedade pelos governantes.

Na espera improvável de um cavalo-de-pau nas políticas públicas, surgem ações espontâneas de inversão do uso das ruas. Nelas, a abordagem dominante da cidade como utilitário (ruas para trânsito de veículos; passeios para trânsito de pedestres; shoppings centers para compras e lazer) é perfurada por momentos de encontro não-programado, de lazer espontâneo, de articulação social rica e diversa. Tais ações existem em Belo Horizonte e podem vir a alavancar mudanças efetivas no uso dos espaços públicos.

Um pequeno mapeamento elencaria o Quarteirão do Soul, na rua Goitacazes; o Duelo de MC’s, sob o viaduto Santa Tereza; as feiras; as festas de rua; etc. Aqui abordarei uma manifestação incipiente e, justamente por isto, com grande potencial e fragilidade: a dos blocos carnavalescos de rua. Evitarei os blocos já consolidados (Banda Mole, Santo Bando) para tratar dos recém-nascidos Tico Tico Serra Copo e Bloco do Peixoto, pela suspeita de que os primeiros estão inseridos em uma lógica de consumo convencional (o folião-cliente contrata um serviço oferecido por um fornecedor) e os últimos se estruturam por lógicas de operação que abrem brechas para a espontaneidade, a criação coletiva e, consequentemente, para uma idéia mais potente de usufruição e de gozo.

Tico Tico Serra Copo e Bloco do Peixoto surgiram em 2009, pela iniciativa espontânea de grupos de amigos. Não possuem fins lucrativos, são somente motivados pelo desejo de se brincar carnaval em uma cidade com pouca tradição foliã. Tampouco possuem estrutura hierárquica rígida, não sendo os organizadores rotulados em ‘coordenadores’ e ‘diretores de sei-lá-o-quê’. Operando de maneira anárquica e espontânea, os dois blocos reuniram, no domingo e na terça-feira de carnaval, da tarde até a noite, cerca de 150 foliões nas ruas dos bairros da Serra e do Santa Efigênia.

Eis o Tico Tico, do bairro da Serra: um grupo de amigos decide organizar o bloco e espontaneamente se dividem tarefas, como fazer um blog, confeccionar um standarte, procurar vendedores de bebidas, chamar os músicos, etc. O blog possibilita mais contribuições: sugere-se o trajeto, o samba-enredo, disponibilizam-se marchinhas e ensina-se como cada um pode produzir seu próprio chocalho com materiais caseiros. As adesões pululam e na concentração em frente à Casa Ramalhete havia cerca de 100 foliões – vários munidos de seus próprios instrumentos. No percurso, mais contribuições espontâneas: um banho de mangueira é oferecido na Rua Oriente, e uma surpreendente farofa é distribuída aos foliões na Rua Níquel. Os moradores aderem entusiasticamente.

Conforme avançava, o bloco crescia e o próprio percurso se alterava: Allah-la-ô em um lote vago; Me dá um dinheiro aí dentro de uma agência bancária; Sassaricando sob um temporal; e, apoteoticamente, Daqui não saio cantado em um bar já na região da Savassi – após 3,5 km de folia. Durante uma tarde, aquelas ruas ganharam dimensões sociais e simbólicas como há muito não se via. Abrigaram o encontro, a troca e o gozo coletivos não-programados, abertos para o desejo e o acaso.

Ruas podem servir a carros, mas também a pessoas. Podem nos isolar em bolhas com ar-condicionado, mas também podem nos congregar em uma celebração ritual que inventa sentido para a existência. As manifestações aqui apresentadas apontam (por seu modo de operação aberto à criação, seu potencial agregador e de invenção de sentido pelo jogo) para uma ocupação das ruas fora da lógica produtivista dominante. A cidade se torna, usando um termo cunhado por Paulo Leminsky para o objeto poético e que José Miguel Wisnik aplica aos dribles dos jogadores brasileiros da copa de 70, um grande inutensílio: à sua dimensão utilitária agregam-se camadas de gratuidade - o encontro inesperado, a troca desinteressada, o gozo-ritual.

Para saber mais
Blocodaserra.blogspot.com
Blocodopeixoto.blogspot.com
Veneno Remédio. O futebol e o Brasil. José Miguel Wisnik. Companhia das Letras, 2008.

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